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16/10/2021
Neste texto reflito sobre a série Round 6 e explico porque a inadequação ao público infantil vai bem além do fato de haverem cenas de violência.
Assisti Round 6 ao lado de meu filho de 15 e de minha filha de 13. A experiência foi marcante e exigiu muito, mas muito diálogo. A série está provocando debates no meio educacional porque ganhou fama até mesmo entre crianças pequenas. Nos pátios escolares, a moda da vez é brincar de Batatinha 1, 2, 3...
O conteúdo é inadequado ao público infantil, como revela a classificação indicativa (16). Como pesquisador de comportamentos lúdicos, fiquei ansioso para assistir. Além do mais, meus filhos tinham me alertado para o fato de que a série "não tem nada a ver com crianças e tem um monte delas assistindo cenas pelo TikTok".
Como sabemos, aquilo que captura apaixonadamente os adultos, ou aquilo que os adultos levam muito a sério, pode despertar nas crianças um grande interesse. Além ver trechos pelo TikTok, as crianças estão ouvindo os adultos falar sério sobre a série. E, como as crianças sempre brincaram de representar aquilo que de forma especial repercute entre os adultos, agora elas resolveram brincam de Round 6, tal como outras gerações brincaram de Frankenstein, Aliens ou Freddy Krueger nos recreios de outrora.
Mas por que Round 6 está repercutindo tanto entre os adultos e por que devemos acompanhar o que as crianças criam a partir da série? Pois bem, o buraco é mais embaixo. Tem muita gente preocupada com a cenas de violência e esquecendo de algo mais complicado. Explico.
Round 6 apela para as brincadeiras infantis, tradicionais, como cabo de guerra, batatinha 1, 2, 3, bolinha de gude e as transforma em cenários impressionantes, realistas, convincentes, nos quais se desenrolam disputas mortais em nome de uma grande quantidade de dinheiro. A morte no jogo é eminente e isso mexe demais com o espectador, afinal, quem nunca morreu num jogo? Ainda que de forma simbólica, muitos jogos infantis se sustentam a partir da ideia de se manter vivo no jogo ou morrer. A gente ouve as crianças dizerem com frequência "morri", ou "você morreu de novo", ou "cuidado pra não morrer". A diferença é que, ao contrário dos jogos infantis, em Round 6 não tem como morrer e voltar a jogar.
Além disso, a narrativa parece explorar uma das matrizes básicas da acumulação individual de riqueza, um sustentáculo da desigualdade social global: para que uma pessoa possa ficar muito, mas muito rica, um monte de gente tem que se esfolar até o limite da sobrevivência. E para que a multidão tope o esfolamento, as suas condições de vida tem de ser muito precárias. E mais, para que isso perdure por muito tempo e abranja cada vez mais indivíduos vulneráveis, tem de haver regras que serão aceitas como último recurso à sobrevivência. Dentro de Round 6, os esfolados concordam com os termos da esfola. Sua condição anterior é tão lastimável, que eles topam correr quaisquer riscos.
É assim aqui fora também. A metáfora é muito atual, aponta para dentro da gente e faz menção às questões sociais mais latentes e abrangentes da contemporaneidade, como a escandalosa acumulação de capital na mão de alguns poucos bilionários, ou a crescente precarização do trabalho em grande parte do mundo, onde milhares se sujeitam a trabalhar muito por pouco, e tudo dentro das regras do jogo, tudo dentro das "4 linhas".
Pouco importa se as "4 linhas" são uma constituição federal ou um "batatinha 1, 2, 3. Num mundo em que o dinheiro manda, os endinheirados refazem as regras do jogo de acordo com suas conveniências financeiras. Se preciso for, eles intensificam o grau de vulnerabilidade social, combatem políticas de assistência social, fazem desaparecer direitos conquistados, desestabilizam governos inteiros, incentivam polarizações políticas, enfraquecem pactos sociais, precarizando as condições de vida e de trabalho só pra poder contar com mais jogadores dispostos a arriscar a vida por dinheiro.
É na absorção de aspectos dessa lógica cruel que, a meu ver, reside a principal razão da inadequação deste conteúdo para as crianças. Não podendo ainda interpretar os jogos da série como metáforas ou como críticas aos graves problemas sociais que criamos, o que as crianças podem absorver neste caso é a ética do salve-se quem puder, o elogio ao individualismo e a veneração por dinheiro.
Neste sentido, é válido realizar alguma mediação nos pátios, ouvindo o que as crianças estão dizendo sobre a série. As imagens de violência são inadequadas, sim, devemos evitar ao máximo que elas acessem, coscientizando as famílias sobre a questão. Mas simplesmente proibi-las de brincar de Round 6, sem problematizar o que elas estão representando, é subestimar o potencial de aprendizagem das crianças.
Então, antes de proibir, cheguemos mais perto, brinquemos juntos, questionando as atitudes quando necessário. Uma vez já tendo visto cenas, ou ouvido falar da história, é inevitável que elas explorem o conteúdo de algum modo. Proibir não resolve, só adia. Ademais, se de fato o tema da série ganhar relevo entre elas, problematizar Round 6 pode ser uma baita oportunidade para se falar sobre solidariedade e empatia, virtudes que, nas estrelinhas do roteiro, a própria série parece querer evocar.
*Nélio Spréa é doutor em Educação pela UFPR e coordenador da Parabolé Educação e Cultura.
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