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08/10/2021
Discuto neste texto a necessidade de promovermos junto às crianças atividades que propiciem a criatividade, o movimento corporal e o convívio social.
A farta e encantadora oferta de jogos e vídeos online cai como uma luva na rotina de algumas famílias, especialmente quando as crianças têm de estar em casa por mais tempo.
É que, para além do entretenimento que geram, estes atrativos também ajudam a manter os filhos quietos por longos períodos, sem bagunçar a casa, ou protegidos dos perigos de se machucar brincando.
Junta-se aí a fome com a vontade de comer. Youtubers, animações e games atuam como uma espécie de "sossega leão”.
É a partir desta constatação que me aventuro a dizer que os produtos da indústria do entretenimento virtual infantil não servem apenas às crianças. Servem também aos pais que, de acordo com suas conveniências, deixam as novidades tecnológicas ocuparem significativamente a vida de seus filhos.
Há benefícios, sim. Mas é preciso enxergar as possíveis consequências ngativas.
O excesso de tempo em que as crianças passam com a cabeça pendendo para frente, sentadas e sem se movimentar de modo mais amplo, pode ocasionar problemas posturais como cifose, escoliose e outras perturbações de ordem física.
Pouca gente está atenta a isso, afinal é muito difícil identificar o avanço destas doenças a curto prazo. Pesquisas no campo da ortopedia nos alertam que estamos diante de uma pandemia mundial de doenças cervicais na infância causadas pelo excesso de uso de smartphones.
Este novo modelo de entretenimento, que é capaz de concentrar em uma única tela uma gama infinita de possibilidades de diversão, faz com que um mundo de encantamentos, desafios, lutas, disputas e conquistas esteja ao alcance dos dedos das crianças. Já não é preciso levantar-se do sofá, dar voltas na casa, subir no muro, construir castelos e quarteis generais para se sentir um conquistador ou super-herói.
Ficar no computador, tablet ou celular por horas a fio pode significar também uma redução drástica das possibilidades de interação social. Ainda que existam propostas de jogo em rede, ou plataformas que permitem interação virtual, como os sites em que as crianças criam seus perfis, formam clãs e se comunicam frequentemente, ainda assim o convívio social e a experiência cultural estarão sempre restritos às condições e limites de cada dispositivo ou aplicativo.
Não haveria mal nenhum nisso não fosse a quantidade de horas que estas atividades ocupam. Os jogos eletrônicos e vídeos são produtos culturais fabulosos e é inegável que há neles contribuições importantes para o desenvolvimento das crianças.
Mas há que se ter equilíbrio. Deixar de se mover por horas, mantendo-se sentado em um mesmo lugar, todos dias, ao longo de anos, certamente trará prejuízos à saúde. Quando submetida a esta condição, a criança encontra poucas condições de criar mais livremente, de frustra-se com seus erros e tentar novamente, de empreender fantasias brincando, de explorar materiais diversos e de estabelecer novos vínculos sociais e amizades.
A prática esportiva, o “brincar à moda antiga” e as experiências artísticas são contrapontos interessantes que podem ajudar a equilibrar esta equação. Jogos com bola, circuitos de salto e corrida, práticas de arremesso, passeios de bicicleta e caminhadas; experiências dançantes, teatrais, musicais, circenses e artesanais; brincadeiras tradicionais como pega-pega, esconde-esconde, jogos de mão, corda e elástico, quebra-cabeça, bater cartinha, subir em árvore, brincar de casinha e carrinho são todas ações que carregam referências culturais importantes e se tornam fonte de conhecimento para as crianças.
O “brincar à moda antiga”, por exemplo, pode brotar da p´ropria necessidade de se entreter diante da falta de oferta de algo pronto. A criança pode até ser orientada por adultos em alguns momentos, mas é fundamental que ela encontre tempo e espaço para descobrir o que fazer durante a brincadeira. É preciso sentir tédio para que algo novo venha a mente e a criatividade aflore. Fornecer entretenimento o tempo todo à criança é decretar morte à criatividade. Além disso, ao empreender por conta própria a sua atividade, a criança acessa referenciais importantes da vida em sociedade.
Por exemplo, ao brincar de ser mãe ou pai com seus colegas, cuidando de bonecos e bonecas, arrumando a casa, a criança apreende e exercita regras dos comportamentos maternal e paternal. É que estas regras sociais, com as quais ela própria interage em seu cotidiano, migram para a brincadeira e são de algum modo redistribuídas pela criança de acordo com suas necessidades. Questões da ordem do dia, da memória afetiva, aparecem na “cena” que a criança inventa, são selecionadas e misturadas de acordo com os seus interesses, compondo uma nova realidade.
Na hora de montar a brincadeira, a criança precisa pensar nas escolhas que fará. Pensando em ser pai ou mãe, ela se depara com os significados e atribuições destes papeis e opera interpretações sobre eles. A “cena” criada pela criança é fruto de sua imaginação. Mas o que ela vive na brincadeira é real, pois seus sentimentos e suas ideias estão sujeitos à coerção e ao constrangimento alheio que surge da experiência com os outros.
Pais e educadores podem estimular a prática de brincadeiras tradicionais, brincando junto com as crianças e definindo limites de tempo para a criança estar diante de uma tela.
Não se trata, portanto, de demonizar as novidades tecnológicas. Pelo contrário, o que está em jogo é compreender os limites dessa apropriação e as consequências que ela gera. Precisamos fazer com que as novas formas de entretenimento convivam com as velhas, sem que estas se reduzam em função daquelas.
O fato de termos brincado de esconde-esconde, de pega-pega, de bola, de corda, de dança etc., durante milênios sem cessar, faz pensar que algo de substancial há nestas antigas práticas. Pular, cair, levantar, balançar, montar, quebrar, correr, fugir e pegar foram, ainda são e sempre serão práticas com as quais teremos que conviver para o bem de nossas articulações ósseas, cognitivas e sociais!
Nélio Spréa é doutor em Educação pela UFPR e coordenador da Parabolé Educação e Cultura.
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