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O movimento Escola Sem Partido e a pressão ultraconservadora na Educação Brasileira

08/10/2021

Neste artigo escrito para o portal uruguaio "Trama Al Sur", discuto este projeto de Lei que se tornou conhecido no meio educacional como a Lei da Mordaça.

O Escola Sem Partido surgiu no Brasil em 2004 como reação à suposta influência ideológica de esquerda que estaria por tomar conta da educação brasileira. Movimento impulsionado por um entusiasmado discurso de neutralidade política, o Escola Sem Partido alcançou repercussão nacional quando em 2014, a pedido do então deputado estadual fluminense Flávio Bolsonaro, a proposta foi apresentada como anteprojeto de lei. De lá para cá, tramitaram dezenas de variações deste anteprojeto na câmara federal e em diversas outras casas legislativas, estaduais e municipais.

Por carregar no título de sua proposta uma denúncia, a de que partidos políticos estariam doutrinando estudantes nas escolas, a iniciativa engajou não só ultraconservadores e fundamentalistas como também cidadãos de perfil mais moderado. E isso não se deu por acaso. É que esta suposta influência política e ideológica nas escolas foi tratada pelo movimento como parte de um projeto de poder mais amplo, global, com forte conotação conspiratória.

Eis aí mais uma expressão da velha obsessão conservadora, a de evocar o medo do comunismo, intensificá-lo, recriando inimigos imaginários, perigosos, contra os quais deverão se insurgir os heróis patriotas, sempre muito bem armados, detentores das mais altaneiras virtudes morais. Vemos aí, também, a velha estratégia eleitoral, que ressurge sempre que o espectro político da esquerda passa a vencer eleições. Sim. Esse fenômeno ressurge de tempos em tempos e não ocorre apenas no Brasil. Sempre que o campo progressista avança, não basta apenas demonizar os personagens políticos a ele atrelados. É preciso evocar também a presença de algo mais amedrontador, uma força maligna, que estaria por dominar o mundo.

Assim, o movimento Escola Sem Partido, como tantas outras cortinas de fumaça já criadas pela extrema-direita, entrou na cena política brasileira sob pretexto de livrar a nação do “mal comunista”. Servindo a interesses eleitorais, alcançou fama e reuniu milhares de adeptos e simpatizantes em todo país. Não tratou, em nenhum momento, de abordar os males que de fato sangram o debate público no país. Tampouco preocupou-se em combater os males que destroem a biodiversidade, que poluem as águas, que alteram o clima. Não passou pela cabeça de seus representantes sequer identificar quais males asseguram tamanha desigualdade social, nem as razões pelas quais se intensificam a fome, o trabalho infantil, a violência de gênero, o racismo, a exploração do trabalho. Não, nada disso ganhou importância para este movimento. Pela via contrária, e menosprezando essas mazelas, o Escola Sem Partido dedicou-se a nos livrar de um outro mal, aquele que supostamente habitaria a ideologia alheia, a preferência alheia, a opinião alheia, cujas existências estariam atreladas a um dissimulado processo de doutrinação de jovens e crianças protagonizado por professores.

Oco em fundamentação sociológica, carente de dados capazes de comprovar o que denunciava, e repleto de fantasias de cunho conspiratório, o Escola Sem Partido foi fortemente impulsionado pela polarização que tomou conta do debate político no Brasil e que ajudou a sustentar o golpe parlamentar de 2016 e a vitória da extrema direita nas eleições de 2018. Por outro lado, durante anos, o movimento ajudou a intensificar esta polarização, favorecendo tanto o golpe quanto a ascensão. Assíduos frequentadores de eventos e programas de rádio e TV, seus defensores pregaram anos a finco a existência de um complô ideológico, doutrinador, que haveria de usar a Escola e, sobretudo, as crianças, como vetores da implantação do comunismo e da chamada “ideologia de gênero” no Brasil.

Ora, tudo isso não foi à toa! Estávamos (e estamos) debatendo intensamente no Brasil a violência de gênero, os crimes de homofobia e racismo, a persistência do trabalho escravo, a manutenção de direitos trabalhistas, a entrada de negros nas universidades, as cotas raciais em concursos públicos e uma série de outras medidas, posturas e políticas públicas que vinham fortalecendo nossa democracia e popularizando os meios de acesso a bens de consumo e à participação cidadã. Todo este debate, estas ações afirmativas, mexeram profundamente com estruturas enraizadas em nosso psiquismo, afetaram o comportamento dos grupos e, lentamente, estavam provocando alterações na base social.

Foi neste contexto que o movimento Escola Sem Partido se expandiu. Encampado principalmente pelas bancadas religiosas e por parlamentares da chamada extrema direita, o projeto surgiu como mais uma dentre tantas reações ultraconservadoras ao avanço progressista. Suas propostas visavam estancar o fenômeno democrático, minimizar o avanço das garantias de direitos e frear as conquistas populares. Ao entrarem em vigor por meio da aprovação de leis, tais propostas impediriam a liberdade de expressão dos professores em sala de aula, constrangendo especialmente a reflexão histórica e sociológica e impedindo que fossem feitos estudos sobre sexualidade na escola, tema caro à Educação contemporânea, essencial no combate à violência de gênero.

Um dos pontos mais polêmicos do projeto era a colocação de um cartaz em todas as salas de aula do Brasil. Este cartaz serviria para orientar o comportamento dos professores. Outro ponto aterrador era a implantação de um disk denúncia, por meio do qual alunos e pais poderiam acionar o ministério público e denunciar professores que manifestassem uma determina preferência política ou que discutissem valores morais distintos daqueles que o estudante encontrasse em casa.

Por estas razões, nunca houve consenso sobre sua legitimidade jurídica. Já no início das discussões que ganharam os espaços midiáticos, quando dezenas de projetos de lei inspirados pelo Escola Sem Partido passaram a tramitar nas casas legislativas em várias regiões do Brasil, o ministério público emitiu nota em que apontava sua inconstitucionalidade. De acordo com o movimento Professores Contra o Escola Sem Partido, entre 2014 e 2018, foram apresentados 147 projetos de lei, sendo que, destes, 26 foram rejeitados, 18 entraram em vigor e 103 seguiram em tramitação. Em 2017, uma liminar do ministro Luís Roberto Barroso suspendeu no Supremo Tribunal Federal uma destas leis em vigor, a do Estado de Alagoas, acirrando o debate sobre a questão nacionalmente.

Por fim, no mês de agosto de 2020, o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo PDT e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino, encerrou a disputa jurídica. Por 9 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da mesma que fora suspensa em Alagoas. Esta decisão é que norteará daqui pra frente o entendimento do STF sobre o tema. Fim da linha para mais uma intentona de cunho fascista no Brasil. Dois dias após a decisão, o presidente do Escola Sem Partido anunciou publicamente que deixaria o movimento e encerrou todas as contas do projeto nas plataformas digitais que estavam sob sua responsabilidade.

 

Um movimento que nega fogo, mas cheira à fumaça

 

O movimento Escola Sem Partido sempre destacou apenas a suposta “catequização de esquerda” na Educação Brasileira, como se apenas essa vertente ideológica pudesse ser ali sentida e revelada, como se a escola não fosse, tradicionalmente, um espaço onde coexistem práticas conservadoras e progressistas, e onde também se descobre, com frequência, a suposta “catequização de direita”.

A ação pedagógica tende a refletir os pressupostos culturais que prevalecem em determinada sociedade. A escola, de modo geral, não subverte os princípios prevalecentes na sociedade, mas reproduz o seu movimento. Se a sociedade passa por transformações, a escola assimila, mas lentamente. Há um descompasso entre estes dois ritmos de mudança e as instituições de ensino expressam, via de regra, um certo atraso em relação às dinâmicas da sociedade.

Assim, em um país como o Brasil, com uma população predominantemente conservadora, teremos também uma Educação em que a visão conservadora domina. Ao contrário do que pregou largamente o Escola Sem Partido, não há nem nunca houve um domínio “esquerdista” na Educação brasileira. Se fosse possível monitorar as influências políticas e ideológicas que afetam o cotidiano escolar, o que de fato saltaria aos olhos não seriam militantes de esquerda conspirando a favor do comunismo ou da chamada ideologia de gênero, mas o proselitismo religioso proveniente de profissionais devotos, a negação da laicidade do Estado, o autoritarismo incrustrado nas práticas disciplinares, a reprodução de pedagogias arcaicas que limitam o protagonismo juvenil na produção do conhecimento e a enunciação cotidiana de valores conservadores os mais diversos, sem os quais não seria possível dar continuidade à reprodução das desigualdades sociais com as quais, há séculos, convivemos.

 Por outro lado, é preciso reconhecer que uma das funções da ação pedagógica é produzir a ampliação de referenciais científicos, éticos e estéticos. E isso reconduz a escola ao centro de alguns processos de transformação social e mudança cultural, provocando forte incomodo nos setores mais conservadores da sociedade, que sempre compreenderam a Educação como um mecanismo de reprodução dos pressupostos culturais prevalecentes.

Toda comunicação e todo ato educativo carrega um pano de fundo ideológico que revela o tipo de interação social de determinado grupo. Esta interação inevitavelmente impacta a consciência dos indivíduos. Não há como escapar de algum tipo de configuração de cunho ideológico, pois a substância das ideias, a sua própria razão de ser, está na sua significação e no seu sentido. E este sentido, que pode ser transformado, é anterior ao indivíduo que o internaliza, pertence a uma conjuntura coletiva anterior, na qual o indivíduo imerge sem necessariamente notar o quão profundo foi o mergulho. Vivemos, pois, imersos em ideologia. Como diz Bakhtin, “se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada”. Ao contrário do que tanto versou o movimento Escola Sem Partido, não são apenas as pessoas alinhadas mais “à esquerda” que possuem ideologia. Aliás, uma leitura atenta do seu programa, ou uma breve busca sobre a performance política dos seus proponentes é capaz de revelar, de imediato, que o próprio Escola Sem Partido foi também expressão de pressões partidárias e de tendências ideológicas tão intensas e ativas quanto aquelas que propôs combater.

Não há lugar no mundo para uma Educação sem intencionalidades. O ato de educar pressupõe um ideal de sociedade, uma concepção de ser humano, um propósito qualquer que aponte para algo sempre em andamento, sempre por vias de melhorar. A Educação é um espaço de disputas, de tensões. Contribuições progressistas e conservadoras sempre fizeram parte da construção do conhecimento escolar. Não existe Educação fácil, sem conflitos, que não tome partido diante das circunstâncias sociais que a constrangem. Uma Educação que opta por não interferir no mundo a sua volta, e que não compreende a si mesma como resultado das forças ideológicas que a pressionam, é aquela que nega a presença do fogo à sua volta, sem se dar conta do quanto cheira à fumaça.

Nélio Spréa é doutor em Educação pela UFPR e coordenador da Parabolé Educação e Cultura.

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