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Mimos cantantes que acalantam e divertem crianças pequenas

20/04/2021

Neste artigo, reflito sobre o papel dos acalantos, cantigas e parlendas na criação de vínculos entre adultos e crianças

Acalmar, gerar aconchego e segurança, quietar o choro e adormecer: razões pelas quais a prática do acalanto existe. O acalanto é uma modalidade de canto presente na relação de pais e filhos pequenos, um fenômeno cultural que perpassa os tempos e vigora nas mais distintas sociedades humanas. O ritmo repetitivo, o embalo cadenciado e a presença continuada de uma voz conhecida que preenche o silêncio da noite tranquilizam a criança, que adormece. Isso permite que os pais voltem aos seus afazeres ou ao seu sono noturno. Assim, o ato de acalentar resolve problemas do cotidiano ao mesmo tempo em que pode ajudar a estreitar os vínculos de confiança e afeto entre adultos e crianças.

É possível que o hábito de ninar os pequeninos seja tão antigo quanto o ato de falar. Há indícios arqueológicos da existência de práticas musicais há cerca de 40.000 anos, período em que as mais primordiais tecnologias humanas lapidavam tambores em troncos de árvores e flautas em ossos de animais. O canto acompanha a experiência humana ao longo dos séculos, assim como a trajetória do indivíduo ao longo da vida. Atua no refinamento da sensibilidade e na socialização de crianças e adultos. Quando cantamos, podemos estabelecer conexões muito peculiares com o meio social, acessar significados, interpretá-los e desse modo contribuímos com a produção e divulgação de ideias.

Acalanto é um tipo de canto que sempre nos antecede, porque a razão de sua existência é nos acolher no mundo. Ele dá continuidade e amplia nossa experiência intrauterina, marcada pelo ritmo e pelo embalo, pela segurança, pelo aconchego. É o canto que nos recebe, conforta e embala. Por meio de pequenas narrativas rimadas, o canto de quem acalanta anuncia as condições básicas da vida humana. Cantilenas de narrar a experiência básica do viver, saudações transatlânticas de uma referência materna de além-mar, os acalantos falam de saudade, superação, medo, amor, proteção, sobrevivência. 

Assim como os acalantos, as parlendas e as cantigas de roda são expressões que podem favorecer o surgimento de vínculos de confiança entre adultos e crianças. Na escola de educação infantil, por exemplo, esses bens da tradição oral podem ser aproveitados nas interações entre profissionais e alunos. Quando manipula o corpo de um bebê para cuidar de sua higiene, trocar sua fralda ou para adormecê-lo, a educadora vive um momento privilegiado, em que se pode estar a sós com a criança. Mas em função da quantidade de vezes que isso ocorre num único dia e devido ao grande número de alunos numa única turma, esses significativos cuidados correm o risco de acontecerem por meio de ação mecanizada, em que o laço afetivo se esvai.

É aí que as canções e as parlendas podem favorecer um contato mais sensível e significativo. Quando um adulto canta para uma criança, uma ligação entre os dois se estabelece. Entregues à sincronia rítmica das palavras e melodias, os corpos se percebem, por vezes se embalam juntos e os olhares comumente se encontram. Inúmeras interações podem surgir inspiradas no que diz a letra da música. Gestos, sensações, sentimentos e intenções são ressignificados por meio da brincadeira que é impulsionada pelo ritmo e pelo jogo de palavras. A comunicação se abre porque brincar com a música significa imergir em diferentes campos de linguagem que vão além da verbal. Ao brincar com a música entramos nos campos das linguagens gestual e situacional, porque o movimento do corpo ajuda a compor a situação que se desenrola, porque há teatralização e dança e porque os gestos são capazes de comunicar tanto quanto os textos da cantigas.   O repertório oral e gestual se amplia, a relação é permeada por referências afetivas, gerando cumplicidade entre ambos.

Poder cantarolar junto de nossos bebês e crianças aquelas cantigas que um dia alguém cantou para nós é algo encantador. A memória de algo que nos confortou na mais tenra infância é sempre carregada de afeto. Quando a reavivamos é como se pudéssemos ressignificar aquele contexto antigo e redescobrir sentimentos. As canções tradicionais da infância são como meios condutores de afeto. É como se a afetividade armazenada nestas “memórias” pudesse irromper no ato de cantarolar para ser novamente elaborada e transmitida aos mais novos que, futuramente, replicarão às próximas gerações. 

Nesse sentido, podemos compreender que Música é também linguagem e, como tal, provoca ou expressa ideias e sentimentos. O que transmitimos por meio da música pode ser interpretado, assimilado e transformado pelos outros. A música pode ser sentida ou praticada a qualquer tempo e em qualquer espaço. Às vezes, mesmo que não queiramos, lá está ela repercutindo em nossa mente. Quem nunca falou: ‘Essa música não me sai da cabeça?’. Podemos cantar em diversos contextos, trocando a fralda do neném, preparando o café da manhã, dirigindo o carro com as crianças no banco de trás, dando banho nelas, iniciando uma aula, explicando um conteúdo, dando uma lição de moral, etc.

As canções que sugerem movimento e são de fácil assimilação ganham força na primeira infância. Antes de 1 ano de idade, por volta dos 10 meses, os bebês já podem repetir ritmicamente alguns movimentos com as mãos e os braços, sentindo e dominando por alguns instantes a pulsação da música. Por isso, o uso de cantigas que permitem brincar com movimentos que se repetem é indicado. Canções acumulativas, cantigas de roda e parlendas de levantar e cair, abaixar e subir, esconder e achar favorecem o desenvolvimento da criança porque exercitam noções básicas essenciais para a convivência. São uma espécie de tecnologia da educação informal da qual não podemos abrir mão na formação da sensibilidade, da percepção sensório motora e da socialidade das crianças.

Os ritmos e a poética dessas cantigas condensam em si o esforço criativo de gerações que ao longo dos tempos encontraram formas de acomodar, entreter e ensinar crianças. São invenções coletivas em constante processo de ressignificação que tendem a ser transformadas de tempos em tempos. Nessas composições anônimas se acoplam comumente outras tantas formas expressivas, como a dança e o teatro. Uma cantiga tradicional pode virar uma brincadeira de roda que inclui teatralização e coreografia. A tradição oral brasileira produziu centenas de canções cuja métrica e cuja poética inspiraram a formatação de verdadeiros folguedos folclóricos infantis, como é o caso de “A linda Rosa Juvenil”, “Terezinha de Jesus” e “Pai Francisco entrou na roda”.

Se tomarmos a cantiga Roda Cutia como exemplo, podemos com certa facilidade identificar uma conexão de sentido com a vida humana num sentido mais genérico. A letra da música diz

 

“roda cutia,

de noite e de dia,

o galo cantou

e a casa caiu”.

 

As crianças giram em roda, de mãos dadas e cantam. Ao término da cantiga, a roda para de girar e todas caem no chão. Em seguida se levantam e, dando as mãos umas às outras, repetem a brincadeira.

É interessante notar que nesta brincadeira não é a “casa” que cai, mas as crianças. A “casa” neste caso não é de tijolos, nem de madeira. A casa é a vida, a vida que precisa ser constantemente renovada, porque de vez em quando ela desaba.

E o que temos de fazer quando nossa vida desaba? A brincadeira Roda Cutia nos sugere que precisamos segurar nas mãos de quem está próximo, confiar em quem está conosco e seguir em frente, novamente, ainda que saibamos que a casa possa voltar a cair um dia

A vivência de Roda Cutia sintetiza em poesia e movimento corporal a experiência da passagem do tempo (“de noite e de dia... o galo cantou”). Ela trata dessa noção básica que precisa ser apreendida, de que os dias e as noites se sucedem ciclicamente. E sugere a ideia de que se “a casa cai”, logo todos terão de se levantar para recomeçar, tal como na vida real, cuja renovação de esperança terá de ser cíclica também, pois como numa Roda Cutia, a “casa” poderá ser reerguida inúmeras vezes.

Essa riqueza de sentido poderá ser notada em inúmeras parlendas, acalantos e brincadeiras de roda. Essas modalidades expressivas de nossa cultura são potencialmente educativas e atuam no desenvolvimento da personalidade das crianças desde muito cedo, pois reúnem não apenas elementos rítmicos, melódicos e coreográficos, mas também históricos, sociais e afetivos.

(Texto escrito por Nélio Spréa. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Palestrante, escritor e diretor da Parabolé Educação e Cultura)

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