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22/10/2021
Nestas linhas, busco exercitar um pensamento inclusivo, capaz de acolher a diferença antes de rechaçá-la. Um pensamento que, sem abrir mão de sua condição crítica e original, busque compreender o que lhe é distinto e contrário, para assim poder provocar deslocamentos até mesmo ante o que lhe possa ameaçar.
A semana termina e o professor está no ônibus, em pé, pensativo. A crise em seu país se avoluma, enquanto o casal sentado ao lado elogia os últimos tuites do rei. O professor observa, escuta, pressiona os dedos no corrimão, avista a multidão comprimida que volta pra casa.
Em frente à Igreja Matriz, um grupo de súditos senhores exibe a bandeira do reino e desloca uma grande faixa na direção do ônibus que passa lotado: "intervenção militar já".
É sexta-feira, o professor observa, reúne argumentos, matuta. Ele vê o casal ao lado apreciar no celular os últimos ataques da cavalaria real digital contra a educação de seu país. Agora ele quer esboçar uma resposta, um norte capaz de amparar o casal que navega delírio adentro.
Mas o barulho excessivo do centro, a sensação do cansaço de um longo dia que finda e uma freada que o desloca pra frente o atrasam. O professor segue calado, mas um entusiasmo o reanima.
Sentindo o suor escorrer pelas costas e encostando a cintura na lateral de um assento, ele decide soltar as mãos do corrimão para, num gesto arriscado, puxar de dentro da bolsa um livro.
Na capa se lê Paulo Freire. Rapidamente, diante do risco de uma nova freada, o professor agarra novamente no corrimão e, folheando o livro com apenas uma das mãos, debruça o olho sobre uma frase. Uma ternura lhe invade.
"O que realmente importa ao ajudar o homem é ajudá-lo a ajudar-se; é fazê-lo agente de sua própria recuperação, é colocá-lo numa postura consciente diante de seus problemas”.
Seus ombros relaxam, sua testa descontrai. O livro bambeia em sua mão, quase cai. O professor está vivo e, com a ponta dos dedos folheia a obra. Sem demora, seus olhos assentam sobre outra dádiva, que lhe parece ter sido feita sob medida.
"Primordialmente, minha posição tem de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar. Não posso negar-lhe ou esconder-lhe minha postura mas não posso desconhecer o seu direito de rejeitá-la".
A leitura lhe fortalece, o professor cresce. O ônibus está próximo de sua casa. Antes de saltar, ele titubeia, dá três passos pra trás, presenteia o casal com o livro e deseja-lhe um bom final de semana.
Agora, já na segurança do lar e guardando consigo o aceno dado pelo casal através da janela, o professor aflora em poesia. Terá perdido mais um livro?
Não. Educar, para ele, é um fluxo empático que se refaz e nunca finda, uma fraternidade que só se expande, uma dança de roda ao redor de um fogo que ninguém apaga. E não há como alguém detê-lo nisto.
Citação 1: FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
Citação 2: FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
*Nélio Spréa é doutor em Educação pela UFPR e coordenador da Parabolé Educação e Cultura.
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